Por Eduardo Tavares
Marco da nascente histórica do São Francisco, em São Roque de Minas(MG) |
Tenho escrito, algumas vezes, sobre o nosso baixo rio São Francisco.
Interessante! Nós, ribeirinhos, aqui destas bandas, quando crianças, acreditávamos que o São Francisco era apenas aquele pedaço de rio que vem de Paulo Afonso chegando até à foz. Pouco mais de duzentos quilômetros de extensão e, em nossa imaginação infantil, o rio, mesmo assim (não tínhamos noção de distância), era infinito.
Somente depois, já na adolescência, é que aprendemos que o “Velho Chico” tem mais de 2.800 (dois mil e oitocentos) quilômetros de extensão.
Sempre explorei o baixo rio. Sempre fiquei atento às suas histórias e, sobre o rio, já escrevi diversas vezes, abordando vários temas a ele relacionados.
Paredão de pedras debruçados sobre o rio ( fotos Claudemir Mota) |
Hoje eu resolvi comentar um pouco sobre o rio, mas com outro enfoque, com outro olhar. Ao invés de falar sobre os seus vales com suas serras, sobre os belíssimos paredões de pedras milenares, e suas cavernas, ao invés de falar sobre a beleza de suas margens, adornadas e bordadas pela vegetação típica, além de deixar de lado a história de sua descoberta e de sua colonização e, também, os seus maravilhosos biomas, achei por bem traçar algumas linhas acerca de algo diferente: algo que refoge à nossa preocupação com o valoroso manancial. Me pus a escrever sobre os vapores. Sim, os vapores que, durante décadas, singraram as águas do nosso Opará ( o rio – na linguagem indígena), nos seus três estirões navegáveis, transportando gente e carregando produtos da roça, da mineração, da pecuária, do artesanato, além das mercadorias das feiras e dos mais variados estabelecimentos.
Do topo da Serra da Canastra, no município de Medeiros, começam a brotar fios d’água das profundezas da terra, em meio à vegetação, em diversos tons de verde.
Esses filetes d’água vão se juntando e começam a tomar corpo. Correm em direção à vertente meridional da serra e, adiante, sacodem-se, em queda livre, entrando em choque com o imenso paredão de rochas, esculpidas pelas águas, durante milênios. Ali nasce a cachoeira Casca D’Anta.
O destino dos rios é o mar. Mas, nenhum deles segue direto para o mar! São sinuosos.
Complexo Paulo afonso |
O rio São Francisco, de tão caudaloso e especial, tem a missão divina de fazer surgir vidas, banhar longínquos torrões, fazer uma curva aqui, e muitas outras acolá. Muda de caminho, muda novamente, ma
s, sempre tomando a direção do Norte.
s, sempre tomando a direção do Norte.
Complexo Paulo afonso |
E o rio, desse modo, vem crescendo, afastando-se de suas origens e banhando terras, dando vida a animais e vegetais. E lá vem ele trazendo riquezas e esperança aos povos do Oeste e Norte de Minas e do semiárido da Bahia, de Pernambuco, de Alagoas e de Sergipe.
No passado ele, mais uma vez, despencava lá do alto, em Paulo Afonso, formando uma bela cachoeira, estreitando-se no cânion e livre, forte e soberano, penetrava no oceano abissal, empurrando suas águas.
Complexo Paulo afonso |
Hoje, em Paulo Afonso, o rio sofreu mais um barramento, depois mais outros, formando, assim, o complexo de hidrelétricas Paulo Afonso I, II, III e IV. À montante, logo à frente, outra hidrelétrica, a de Xingó, a mais moderna.
Como sabemos, o São Francisco foi dividido geograficamente em quatro partes: o alto São Francisco, que começa acima de São Roque de Minas (nascente histórica), em Medeiros, e segue até Pirapora, também em Minas Gerais; o médio São Francisco, que segue de Pirapora até o município de Remanso, no Estado da Bahia; o submédio São Francisco que vem até Paulo Afonso e, finalmente, o baixo São Francisco que ruma até a foz, entre Alagoas e Sergipe.
O rio, a terra, o cerrado, a mata, a caatinga, os bichos, os peixes, enfim, Formam uma rede de relações que vem sendo degradada a partir da chegada do homem branco, do homem “civilizado”, até os dias de hoje. O que aconteceu, nós já falamos antes: os índios foram escravizados, aculturados e dizimados. Os vaqueiros e os “vazanteiros” foram escorraçados. A mata ciliar desapareceu e as fontes de água que alimentam os rios da bacia começaram a secar. Colossais barragens represam o seu curso, e não são poucas: Três Marias, Itaparica, Moxotó, Sobradinho e as mais próximas, como o complexo de Paulo Afonso e Xingó, já referidas aqui.
Os animais da terra, das águas e dos ares foram brutalmente dizimados por ações antrópicas(do homem).
Mas, como eu já disse, embora em seu estado senil, o rio, como “Prometeu”, resiste, resiste e resiste. Sofre e chora! Mas, até quando?
É que, na mitologia, “Prometeu”, por ordem de “Zeus”, foi acorrentado no alto de um penhasco e todos os dias uma águia lhe dilacerava o fígado, que se regenerava todos os dias.
Canoa de pescaria (foto Claudemir Mota) |
E o rio? Ele tem resistido sim, mas, diferentemente de “Prometeu”, ele não se regenera tão fácil e pode morrer.
Mas, deixemos a tristeza de lado e vamos falar um pouco do passado. Da navegação fluvial pujante de outrora. Hoje só navegam sobre a suas águas embarcações de baixo calado. Quando criança, o rio tinha vida. Era um vai e vem de “canoas de tolda”, de “chatas” de lanchas enormes como a “Tupy” a “Tupigy” e a “Tupã”, sem falar no navio “Comendador Peixoto”, símbolo de luxo e de riqueza nas águas do baixo São Francisco.
Mas, se esta parte tão pequena do rio era tão rica em navegação, como funcionavam os transportes fluviais nos estirões navegáveis existentes no médio e no submédio São Francisco? Isso me deixou curioso. Antes, devo dizer que o São Francisco é um rio intermitente e só não seca por completo, em algumas épocas do ano, devido ao sistema de retroalimentação que o sustenta.
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De todos os grandes rios do mundo, o “Velho Chico” é um dos poucos que se alimentam somente das águas das chuvas e de uma rede incalculável de nascentes, veredas, córregos, ribeirões e outros rios. São mais de 160 afluentes, com destaque para os rios: Pará, Paraopeba, das Velhas, Jequitai, Verde Grande, Verde Pequeno, das Rãs, Abaeté, Paracatu, Carinhanha, Corrente e Grande, alguns em uma margem, outros no lado oposto. Claro que esses rios recebem a importante ajuda do aquífero de Urucuia, um dos cinco maiores do Brasil, mas que, como se fora uma espécie dos sinais dos tempos, está secando. Sem falar que o São Francisco, em razão de ter boa parte do seu leito situada em pleno Nordeste Setentrional, em pleno Polígono das Secas, sofre os efeitos da evaporação (no verão, sol a pino, o rio perde 40% do seu volume) e da evapotranspiração,
as plantas consomem boa parte do líquido.
Comendador Peixoto – acervo de Caroline Machado. Esse navegava no baixo São Francisco e naufragou defronte à cidade de Penedo, em Alagoas. |
Mas, com dois estirões navegáveis enormes, chegando a quase mil quilômetros de extensão, cada, como se desenvolvia a navegação nos tempos áureos do conhecido rio-mar? Pesquisei e descobri que o vapor era o mais importante veículo de transporte de grande parte do Nordeste. O Saldanha Marinho foi o primeiro vapor a navegar no rio das Velhas e no médio e submédio São Francisco, por volta de 1871. Outro grande navio a vapor que se destacava na época, na região de Januária, em Minas Gerais, era o Matta Machado.
O Vapor denominado de Luiz Vianna tinha Porto Seguro também em Januária.
Já o Djalma Dutra, vapor maior e mais luxuoso, singrava as águas dos dois estirões maiores, transportando a gente ribeirinha e suas riquezas.
Havia o Cordeiro de Miranda, em Juazeiro, na Bahia. Este transportava pessoas,
Vapor Otávio Carneiro, zarpando. A tripulação em traje de gala. |
(Acervo Francisco Bandeira da Mota)
gado, madeira e tudo mais.
No porto de Pirapora, em Minas, o pequeno vapor denominado de Siqueira Campos. Já o vapor Governador Valadares naufragou logo abaixo do Porto da Lapa, na Bahia, em 6 de setembro de 1950.
Um dos grandes vapores daquela época de ouro do São Francisco foi o Barão de Cotegipe, que, depois de suas viagens, atracava em Januária. Tinha ainda o Antônio Moniz, com três andares e muitos outros como o Delsuc Moscoso, o Fernandes da Cunha, o Paracatu, o Afonso Arinos, o Curvello, o Antônio Nascimento, o
Vapor Juracy Magalhães ( acervo Anwar Abdalla) |
São Salvador, o Engenheiro Halfeld, o Raul Soares, o Wenceslau Braz, o São Francisco e mais de uma centena de outros vapores, balsas, lanchas, além de milhares de canoas pequenas, das denominadas “chatas” e das lendárias “Canoas de Tolda”, embarcação símbolo do São Francisco e que se notabilizava pela grandeza e pela beleza de suas velas. Os nomes dos vapores variavam muito, de acordo com a vontade de fabricante ou do comprador. Às vezes dava-se à embarcação o nome do político da região, do governador ou
Canoa de Tolda foto de Claudemir Mota |
até do presidente. Outras vezes o vapor, e outros tipos de barcos, eram batizados com os nomes das cidades ou dos rios da região.
Em muitos vapores eram realizados bailes e, para os ricos, a vida era bastante glamorosa, a bordo das grandes, simpáticas e elegantes embarcações.
Quanto à Canoa de Tolda, essa eu vi muito, em Traipu. Quando ela despontava na curva do rio, vindo de Propriá, em Sergipe, aqui no baixo rio. As velas abriam, cada uma para um lado para pegar o chamado “vento de popa”. Era uma visão maravilhosa. E quando surgiam, de repente, cinco ou seis ou mais canoas, de uma só vez, cada uma com velas de cores diferentes, aí já era um espetáculo. Era a visão do paraíso. De longe, pareciam grandes borboletas, avançando rio a cima. Embarcações subiam e desciam o rio, ante a contemplação dos beradeiros e barranqueiros.
Hoje, nós não encontramos mais os vapores.
Vapor São Francisco (Acervo Anwar Abdla) |
Segundo o historiador Antônio de Oliveira Mello, a derradeira viagem que o escritor Affonso Arinos fez à sua terra natal, Paracatu, foi de vapor, de Pirapora ao porto de Buriti, no rio Paracatu.
A modernidade encontrou outras formas de transporte. E o rio, infelizmente, quase secou. Apenas em pequenos trechos ainda é possível a navegação com barcos de médio calado. Mas, encontramos muitos vapozeiros, que vivem contando suas histórias, suas experiências e seus “causos”.
Juntos os vapores Wenceslau Braz e o Benjamim Guimarães, no Porto de Januária (MG) (acervo Deniston Diamantino) |
Nos tempos atuais, apenas três vapores ainda navegam com dificuldade, no médio São Francisco, tentando atrair turistas: O Benjamim Guimarães, o São Salvador, e o Saldanha Marinho.
O rio não tem mais profundidade. Embarcações, como já disse, só as de pequeno calado.
Para quem já chegou a ter cerca de 11 (onze) mil metros cúbicos de vazão por segundo e hoje amarga, aproximadamente entre 500 (quinhentos) e 900 (novecentos) metros cúbicos por segundo de deflúvio, dependendo do local do curso d’água, o rio já definhou, não?
Vapor Barão de Cotegipe (acervo de Antônio Emílio) |
Mas, ainda há muita beleza e muita vida no “Velho Chico” que por todos é falado e cantado com imenso carinho.
Para Mário de Andrade o rio é: “O marrueiro do Sertão”. Para Jorge Amado: “A veia arterial do Brasil”.
Dantas Mota diz: “Sabeis que sou pobre/do contrário Francisco não seria”.
Já Caetano Veloso canta: “Velho Chico, vens de Minas de onde o culto do mistério se escondeu”.
Um dos maiores defensores do rio, o religioso dom Luiz Flávio Cappio, aquele que fez greve de fome, diz, nesses singelos versos:
“Rio vivo, povo vivo.
Rio morto povo morto.
Rio ameaçado, povo ameaçado.
Rio doente, povo doente.
Mas, para mim, ninguém se expressou tão bem em relação ao rio como Olavo Bilac, (in Os Rios)
“Um desejo e uma angústia, entre a nascente de onde vindes e a foz que vos devora”.
Pois é gente, é muito grande o legado do ainda festejado rio São Francisco, o Opará (grande rio – mar). O “rio dos índios”; o “rio dos mitos e das lendas”; o rio dos coronéis e dos desbravadores”; o rio das crianças”; o rio das benzedeiras”; O rio das lavadeiras”; o rio dos romeiros e do Bom Jesus da Lapa, o rio das águas sagradas.
É universal a crença de que os mistérios habitam os mares, os rios, os córregos, as lagoas, as grotas, e, por ai vai.
Com o São Francisco não é diferente. Corre, de boca em boca dos barranqueiros, a crença, segundo a qual, o rio dorme nas horas mortas, a partir do início da noite. O rio todo para. Nesse momento ninguém deve mexer n’água. Não é bom acordar o rio.
Baixo São Francisco à noite – município de Traipu. Foto Claudemir Mota.. |
Naquele artigo primeiro, eu cheguei a dizer: quando não era mais dia, mas não chegava ainda a ser noite, com as águas mansas, o rio, entre um cochilo e outro me dizia, em tom de súplica: ” me ajude, não me deixe morrer”. Naquela parte da missão aventuresca já narrada, as horas passavam e, em dado momento, já pela madrugada, deitado em um rochedo que se debruçava sobre o rio, acima o céu estrelado, o silêncio somente interrompido pelo coaxar dos sapos, pelo trinar dos grilos, pelo zumbis das abelhas e pelo crocitar das corujas, eu comecei a achar que tudo estava conectado: rio, mata, animais, insetos estrelas e homem. Todos éramos, ali, naquele momento mágico, uma partícula de Deus.
Vou parar aqui mesmo. Senão, não paro. Tenho muito para contar sobre o rio dos vapores.