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Paixão por um rio que sofre

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Imagem da capa

Por Eduardo Tavares
Rio São Francisco
Semana passada,  para fugir do tédio provocado pelo isolamento social, resolvi ver de  perto a situação do Rio São Francisco, o “Velho Chico”. E lá fui eu. Mais volumoso do que no ano passado, com suas águas barrentas em razão do material orgânico arrastado pelos seus afluentes, que cresceram muito nos últimos meses, cheguei a pensar no passado, quando, ainda criança, já tinha o hábito de singrar  suas águas a bordo  das chamadas “canoas de pescaria”.
Depois me lembrei, com tristeza, de um fato preocupante: apesar dos grandes lagos hidrelétricos se acharem com bastante água, isso não significa muito, pois o aquífero que alimenta o Opará e seus afluentes ( mais de 160), denominado de Urucuia, antes um dos cinco  maiores aquíferos do Brasil, está morrendo, e, por isso,  as nascentes do rio estão secando. Quando descoberto, no dia 04 de outubro de  1501, pelo florentino Américo Vespúcio, o deflúvio do rio-mar,  na foz, era de aproximadamente 11( onze) mil metros  cúbicos por segundo. Era tanta força, a correnteza era tão forte que o escriba da esquadra de Vespúcio escreveu para o rei de Portugal: “Majestade, o que estamos a ver, em pleno oceano Atlântico, é um mar revolto com  águas escuras  e léguas à frente uma boca que mais  parece ser um enorme rio”.
Foz do Rio São Francisco
Batizaram o rio de São Francisco, pois  naquela  data comemorava-se, em países da Europa, o dia do Santo Protetor dos animais. A partir de sua descoberta,  o rio começou  a sofrer  processo de degradação, principalmente devido ao desmatamento desenfreado de suas margens, quando, além do uso da madeira para diversas finalidades, utilizava-se o espaço desmatado para o plantio de pastagens. Daí por que o rio,  durante mais de 200 anos, ficar conhecido como “Rio dos Currais”.
Rio São Francisco
O homem acabou com o São Francisco, assim como acabou com o Eufrates, na Ásia e com tantos outros cursos d’água, lagos e mares, como o mar de Aral, e tantos mundo afora.  Nós não somos uma civilização hidráulica, como a China, a Índia e Israel, que sempre souberam manejar a água com sustentabilidade.
Dentro   da pequena embarcação, eu me lembrei do outono passado, quando ( e aí já é outra aventura), passeando pelo rio já bem enfraquecido, percebia ainda ser  possível enxergar muita beleza no outrora denominado “Rio da Integração Nacional”, pois, de tão vasta, sua bacia chega até Brasília. Velejando naquele outono, em zig-zag, por conta dos bancos de areia, verifiquei que muita maravilha, natural ou não,  ainda ornamentava a região: os povoados, as cidades, as igrejas, as garças, que reluziam na longitude do rio com seus voos sincronizados. A água do “Velho Chico” estava cada vez mais azul e, como previsto, as margens, ainda um pouco verdes em razão de chuvas esparsas do verão, ondeavam ornamentadas pelo amarelo, pelo branco e pelo vermelho das flores das caatingas: ipês e mandacarus, além de algumas espécies de cactos, tipo “xique-xique” e “coroa de frade”. Aqui e acolá, árvores como a b
araúna, o cajueiro, o trapiazeiro, o jenipapeiro e algumas espécies da Mata Atlântica. Os biomas se misturavam: um milagroso espetáculo da natureza.
Naquele passeio, descendo  o rio, desde Canindé do São Francisco, em Sergipe, passando pela bela Piranhas, em Alagoas, olhando de perto os morros do Macaco e do Cavalete, passando depois pelo povoado de Entremontes (nome dado por D. Pedro II ao lugarejo, quando de sua expedição pelo rio em outubro de 1859), passando por Pão de Açúcar, com o Cristo a nos abençoar; por Gararu, em Sergipe, e  por Traipu, minha terra natal,   ali, naquele outono, e naquele, ponto da viagem, eu me surpreendi embevecido, a pensar, lembro-me: como tudo é tão lindo! As margens, com suas serras e morros formando desenhos geográficos impressionantes, os paredões rochosos…  mas, cadê a fartura de pescados? Cadê os mandis,  os carás, as xiras, os piaus, os

surubins? Quase não há mais: ao invés dos peixes nativos,  espécies de fora, como a tilápia e o tambaqui. Essa intervenção no ecossistema fluvial foi, certamente, uma maneira encontrada pelos nativos para sobreviverem ante a nova realidade do rio; sem falar que aqui e ali  encontrávamos caranguejos e siris. A água que, dantes, empurrava o mar, estava sendo engolida por ele. Todos os rios começam a morrer pela foz, sabe-se. Me batia o desespero. À noite, a impressão que eu tinha era a de que o São Francisco chorava baixinho, pedindo socorro. E pedindo socorro. Naquele dia de outono, dormimos, eu e uma equipe de nove homens, a bordo da lancha “Catita do Rancho”  e de um Veleiro, o “ET”, e em acampamentos. Amanheceu e seguimos viagem, rio abaixo. Passamos pelo povoado sergipano de Escurial; seguimos  por São Brás, às vezes  em uma margem, às vezes na outra. Depois de navegarmos  por Porto Real do Colégio, no lado alagoano, começamos  a enxergar a cidade de Propriá, no lado sergipano. Belo lugar, desenvolvido e marcado pela presença de casarões antigos e pelo lindo templo católico em estilo gótico. Na verdade, Propriá já foi a segunda cidade mais rica de Sergipe. Era a sede do comércio regional. Mas a decadência do “Velho Chico”, aliada a administrações desastrosas, transformaram-na na 22ª. economia daquele Estado.

A cidade ficou conhecida, também, através do lamento de uma bela canção de Luiz Gonzaga, que chora:
“Tudo que eu tinha deixei lá não trouxe não, deixei o meu roçado plantadinho de feijão, deixei a minha mãe com meu pai e meus irmãos. E com a Rosinha eu deixei meu coração.
Por isso eu vou voltar pra lá, não posso mais ficar, Rosinha ficou lá em Propriá”.
Interessante é que, por coincidência, eu tinha uma tia chamada Rosinha, que morava em Propriá. Naquela época, eu pensava que a música do Gonzaga, que tocava constantemente no rádio, falava justamente dela. Coisas de criança.
Naquele inesquecível passeio, fomos a Penedo, a Santana  do São Francisco, no lado oposto; passamos em Piaçabuçu e fomos pernoitar, depois de Piaçabuçu, na praia de Cabeço, ao pé do grande farol inclinado do tempo do Império.
Voltei meus pensamentos para os tempos atuais e imaginei: seria tão bom que o rio permanecesse do jeito que estava, mesmo com suas águas turvas,  apesar de sua vazão ainda ser mínima! Mas, sei que aquelas são águas passageiras. Sei que a alegria do barranqueiro vai durar pouco. A água que cai com a chuva vai embora com o rio e, lá na frente, se mistura com o mar e se transforma no próprio mar. Tocamos o barco para frente, à montante, e, depois de avistarmos a linda Matriz de Nossa Senhora do Ó, aportamos em Traipu.

Fotos: Eduardo Tavares e Carlo Bandeira